Artigo – 8.12.2011
Os ralos da República...
Itami Campos
Na modernidade, o regime político tornou-se composto por democracia e república. Considerando-se o regime político no Brasil, um complicador se apresenta, pois enquanto a democracia no Brasil se apresenta bem, a república não. É importante considerar o funcionamento da democracia e seu desempenho: direitos sociais e políticos reconhecidos; garantia de liberdade, individual e de expressão; ampla participação, eleitoral principalmente, com mais de 135 milhões de eleitores; avançado processo eleitoral, além de um sistema representativo e partidário com razoável desempenho. Por sua vez, o vetor republicano do regime brasileiro não se apresenta bem, tornando-se importante trabalhar o porquê da República não ir bem e em que falha.
Para tanto, necessário se faz voltar um pouco para o final do Império brasileiro, no século XIX. Na época, o Brasil era um Estado Patrimonial, razão porque bens e patrimônios do Estado eram “propriedade” da família real, por isso o Imperador podia nomear quem ele quisesse e dar cargos e honrarias como lhe conviesse. Também os bens eram assim tratados. Como exemplo as ‘capitanias hereditárias’, ou seja, vasta extensão de terra foi doada, hereditariamente, a um explorador. (Não foi no Império, mas na Colônia! Portugal também tinha um regime patrimonialista)
Em 15 de novembro de 1889, essa condição muda, o Brasil torna-se República - que se caracteriza por serem públicos todo o patrimônio e bens do Estado, da Nação. A palavra república etimologicamente vem do latim: res publica – coisas públicas, ou seja, na república os bens e patrimônios tornaram-se propriedade de seu povo. Portanto, devem ser tratados como pertencentes à Nação e assim disponibilizados: cargos e ocupações; prédios, bens e maquinários; recursos públicos, impostos, dinheiro, praças, estradas, terras, enfim todo o conjunto de bens que, tornando-se públicos, passa a pertencer à coletividade, à comunidade de brasileiros...
A República brasileira foi proclamada numa manifestação militar sem a participação do povo, sendo importante considerar esse povo ausente. José Murilo de Carvalho em seu livro ‘Os bestializados’ trabalha bem esse momento da nossa república. Mostra como a ausência do povo faz com que uma elite se aproprie da República e privatize os bens públicos. No livro, José Murilo precisa essa ausência mostrando algumas estatísticas: percentual mínimo de eleitores – menos de 3% da população participa do processo eleitoral, além disso, 80% da população brasileira eram analfabetos (1920). Essa visão poderia ser objetada pelas muitas greves e revoltas populares da época, contudo, dada a orientação anarquista dos dirigentes sindicais, havia rejeição à participação na política... Pior, essa ausência vai ser acentuada pela privatização e pelo abusivo uso de recursos públicos em interesses particulares.
Essa a ausência apresenta-se como marca de uma cultura cívica que não foi construída, embora ela faça parte do processo de socialização do indivíduo, do enraizamento social, da educação do povo. Formamos uma nação, constituímos um povo – com traços e laços culturais que nos unem e nos faz sentir pertencendo à comunidade, ser brasileiro, mas não agregamos o ethos republicano. O ser republicano, o sentir-se ligado à coletividade detentora dos bens e concebendo esse patrimônio público como seu, por razões mais diversas está faltando. Veja uma consequência.
O caderno “Especial Poder” da Folha de São Paulo de 04/09/2011 revela a ponta do iceberg da corrupção no Brasil - iceberg - porque os dados apresentados se referem apenas a recursos do Governo Federal. Pois bem. Uma estimativa, realizada por um economista da FGV e incluída no Caderno, contabiliza um prejuízo de 6 (seis) bilhões de reais por ano só do Governo Federal, repito. Assim, fazendo os cálculos em 7 anos, de 2002 a 2008, o Brasil perdeu o equivalente à economia da Bolívia, ou seja, 40 bilhões de reais. Não se assustem, pois seria maior uma vez que não há cálculos de desvios e roubos praticados nos recursos públicos dos Estados e das Prefeituras Municipais. Pelo visto, a coisa se afigura mais complicada e o rombo incalculável.
A culpa é do povo? Pode ser, mas que é povo? Em análise política não se trabalha com o ator genérico – a categoria povo expressa diversos segmentos sociais. Veja, setores da sociedade civil, de origem popular, foram responsáveis pela “Lei da Ficha Limpa” que resultaria em mudanças, todavia políticos com apoio de juízes tornaram-na inócua! Isso pode ser um exemplo de como os aparelhos de Estado no Brasil foram moldados para atender a interesses particulares, com elementos infiltrados na burocracia, em assessorias, em governos, no poder legislativo e mesmo no judiciário. A “lei do terço”, que não tem nada de religiosidade, é mais obedecida em contratos e licitações que outros regulamentos. E pelos ralos da República escoam riquezas nacionais e recursos públicos! Itami Campos é Cientista Político é pró-reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão da UniEVANGÉLICA E-mail: itamicampos@gmail.com
Publicado em O Popular - 4/12/2011
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